domingo, 16 de maio de 2010

Desvalorização feminina na Memória (II)

Testemunhos


Vivemos uma era em que se deram importantes mudanças na condição feminina. Todavia um estudo das Nações Unidas datado de 1995 refere que 70% dos pobres no mundo são mulheres e que:

“(…) apesar de duas décadas de avanços na educação e saúde da população feminina em todo o mundo, centenas de milhões de mulheres, quer em nações ricas quer em nações pobres, ainda são economicamente subvalorizadas, é-lhes negado o acesso a um efectivo poder político e são mantidas na submissão por gritantes desigualdades à face da lei.”
[1]

“Mãe e esposa: filhos, cozinha e igreja era o ideal de vida feminina no começo do século. Existiam as senhoras e existiam as mulheres; era essa a grande divisão moral de um género feminino que não teve pernas visíveis até bem entrados os anos vinte [da centúria de 1900], escondendo o corpo em férreos espartilhos e a vida no lar. A casa era o seu território e todo o seu mundo, a gaiola para rir, chorar ou desesperar. O marido, imaginado como príncipe encantado, era a razão básica desta existência feminina, o sentido que tudo decidia: um deus humano. Sem marido, uma mulher burguesa era um fracasso; uma mulher seca, uma puta ou uma solteirona, mas ambas imagens de um grande fracasso. A mulher, fosse o que fosse, era uma máquina reprodutora. As mulheres burguesas eram criadas sem iniciativa, atadas a um destino parasitário e sem outro horizonte além do delírio da fantasia servido por folhetins, romances e sonhos impossíveis.”
[2]

“As mulheres tornaram-se perigosas quando começaram a ler e a escrever.”[3]

“(…) [As mulheres] descobriram que a História tinha sido masculina e que os homens a tinham feito à sua medida, sem nenhum lugar para elas. E começaram a pensar no porquê de tal disparate.”[4]

A gravidez, a maternidade e a amamentação sempre constituíram territórios exclusivos da mulher. Como resposta, os homens criaram através da História e permeando todas as culturas, uma variedade de territórios exclusivos para si próprios: a guerra, a política, o clero, os negócios e assim por diante. Desvalorizaram as mulheres e classificaram-nas como inferiores por duas razões básicas: primeiro por recearem serem eles biologicamente inferiores; segundo porque eles próprios foram desvalorizados pelo desenvolvimento da agricultura.

Contudo, apesar das resistências encontradas, algumas transformações ocorreram ao longo do séc. XX na condição feminina: o parto deixou de ser uma ameaça incontornável à vida da mulher; os contraceptivos garantem uma ideia de responsabilidade perante a reprodução; o sexo passou de castigo a prazer; o trabalho veio possibilitar a independência feminina; a mulher tem cada vez mais acesso à educação e à cultura; os electrodomésticos vieram aliviar o trabalho do lar; a mulher obteve o direito de voto.

Porém, as mulheres não governam, as relações sociais empurram os homens para uma situação em que, fazendo muito pouco, controlam a vida das suas famílias, a economia e a política. “Em África as mulheres produzem mais de 75% da comida, cultivam os campos e fazem tudo o necessário para assegurar a sobrevivência e não se morrer de fome, mas... não decidem.”[5]

Os homens no poder não terão interesse em partilhar o dinheiro ou os lucros; de modo geral, as mulheres nos governos ocupam-se da saúde ou da educação.

“As pressões para que as mulheres sejam conformistas são enormes.”
[6]

“[Fui educada] para falar francês, pôr bem a mesa e sentar-me com as pernas juntas. Não fui à universidade, saí do colégio com a ideia de que me ia casar e ser mamã…”
[7]

“Existe diferença no sentido do poder entre mulher e homem. Eles, por vezes, têm mais o sentimento do poder pelo poder que é o objectivo por que desejam o poder. Pelo contrário, as mulheres concentram-se mais no objectivo, no que querem fazer, o que as leva a esquecerem-se do poder e perdem-no.”
[8]

“Ela [a sua mãe] foi o caso típico de mulher abandonada, sem ter havido divórcio, regressou a casa dos pais, mas nunca se colocou a hipótese de se manter a si mesma: dependia sempre de alguém. Vi-a sempre como vítima… por isso me esforcei em não dever nada a ninguém.”
[9]

“Naquele trabalho [de hospedeira] o cliente era um deus e nem sequer existiam palavras para exprimir o assédio sexual nem nada do estilo. (…) Sucedeu que o meu marido, que era estudante, precisou de uma cirurgia dental e o seguro da companhia [aérea] disse que não cobria os cônjuges dos empregados que eram mulheres; em contrapartida, cobria todos os familiares dos empregados homens.”
[10]

“Porque é que há tão poucas ministras? Porque é que o Fundo Monetário Internacional só tem dois directores? Gostaria de falar como Betty Friedan e pensar que existe um ‘complot’ contra a mulher, mas acontece muitas vezes que o pior inimigo da mulher é a própria mulher. Crescemos num mundo que não nos ensinou a valorizarmo-nos; temos uma falta de auto-estima brutal, uma espécie de sentido maternal em relação ao homem… passamos por alto coisas que depois nos obrigam a lavar pratos. Se as mães dos rapazes de dezoito anos fossem apenas mães e não se preocupassem com a gestão e o conforto, os rapazes aprenderiam a cozinhar e a lavar… Embora também me preocupe estar no ano 2000 e que as mulheres do Afeganistão não possam, não só realizar filmes, como ir ao cinema! Há muitas coisas, a educação não te ensina a valorizares-te, misturando com o pânico de que, se não te comportas como um homem, vais perder os valores que te tornam atraente como mulher…”
[11]

“Pensei sempre que as mulheres são mais lutadoras porque têm necessidade. Somos mais numerosas e somos diferentes dos homens (…). Hoje o feminismo não tem dúvidas sobre o direito à igualdade, mas diz que, por serem diferentes, as mulheres podem trazer outras coisas, como é olhar para a sociedade de outra maneira da que fazem os homens. Seguramente temos mais em conta o indivíduo, a pessoa, as relações, a colaboração e a conciliação. Temos umas relações diferentes com as crianças e uma ideia da sociedade menos rígida e com mais imaginação.”
[12]

“Quando as mulheres são ambiciosas, são sérias, procuram as coisas bem feitas até ao pormenor e, além disso, têm a convicção de que há coisas definitivamente importantes, como é o laço que as une à vida. Quando se faz política, isso nota-se; os homens são um clube que actua, em política, como tal. Pelo contrário, as mulheres sabem, também, que não se podem impor para não serem imediatamente acusadas de autoritarismo ou de histeria, pelo que procuram o equilíbrio e o pacto constantemente.”
[13]

As mulheres mandariam de forma diferente dos homens?
“Espero que não. É um disparate pensar que se podem mudar as características do poder que é, sobretudo, responsabilidade. E esta responsabilidade deve ser utilizada da melhor maneira possível, faça-se o que se fizer, administre-se uma empresa ou um país. É preciso conhecer as pessoas, ajudá-las a melhorar, fazer bem as coisas e, em tudo isso, tanto faz que se seja homem ou mulher. Talvez as mulheres possam emprestar uma certa sensibilidade… No meu caso, sei que, quando via que tinha de fazer algo, o fazia; se tinha de decidir, decidia, assim como quando decidimos ir embora, vamos. O trabalho tem as suas leis e normas para todos, seja-se o que se for.”[14]

[1] Cf. Barbara Crossette, “U.N. Documents Inequities for Women as World Forum Nears” in The New York Times, 18/08/1995. [Consult. 7 Jan 2009] Disponível em http://tinyurl.com/8pmeoj
[2] Margarita Rivière, op. cit., p. 17.
[3] Rita Süssmuth [ex-Presidente do Bundestag] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 189.
[4] Margarita Rivière, op. cit., p. 18.
[5] Graça Machel [activista dos direitos das crianças e das mulheres] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 202.
[6] Idem, p. 190.
[7] Rita Süssmuth apud Margarita Rivière, op. cit., p. 191.
[8] Idem
[9] Isabel Allende [escritora chilena] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 226.
[10] Patrícia Ireland [Presidente da Organização Nacional de Mulheres (NOW) nos Estados Unidos] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 242.
[11] Isabel Coixet [realizadora de cinema espanhola] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 207.
[12] Simone Weil [ex-ministra francesa e ex- Presidente do Parlamento Europeu] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 223.
[13] Idem.
[14] Katharine Graham [empresária e proprietária do Washington Post] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 211.

sábado, 27 de março de 2010

Desvalorização feminina na Memória (I)

A Memória tem sido encarada exclusivamente do ponto de vista individual. Só com o renovado interesse pela História dos povos sem História, se começou a aperceber que a sua vertente colectiva tem particular relevância para o estudo das sociedades, pois embora seja o indivíduo que recorda, fá-lo enquanto parte de um grupo social e, por conseguinte, sujeito a todas as influências que actuam sobre esse grupo. É aliás a memória colectiva que permite a identificação de uma determinada sociedade como diferente das demais.[1]
Um componente fundamental dessa identificação é precisamente a linguagem, a qual reflecte a cultura dos povos, que não é mais que o produto da sua Memória.

A Língua
Quase todos nós utilizamos terminologia masculina para falar de ambos os sexos. O argumento mais comum é o de que, ao falar-se de ‘Homem’, se está a incluir tanto os homens como as mulheres, isto é, se está a falar do ser humano. Porém, não será tal proposição um engano? Não será antes o resultado directo do mito de que a procriação é um papel exclusivamente masculino e de que Deus é masculino?
[2] Tendo o Homem sido feito à imagem e semelhança de Deus – segundo nos diz a religião – isso significa que o homem é o ‘verdadeiro humano’, o modelo do que um ser humano deverá ser quando comparado com Deus. Extrapolando, pode então considerar-se que a mulher será uma aproximação imperfeita desse ideal, o que levará à utilização de termos masculinos de uma forma genérica. Um interessante exemplo deste modo de pensar é dado pelo total da entrada ‘mulher’ na 1.ª edição da Enciclopédia Britânica em 1771: “Mulher – A fêmea do homem. Ver Homo”.[3]
O subtil mas extremamente poderoso efeito da linguagem pode ser melhor percebido se houver uma inversão dos termos da equação: se o termo ‘Homem’ engloba obviamente a mulher, o que aconteceria se o termo ‘Mulher’ designasse também o homem? Seria um absurdo? O senso comum, isto é, o conjunto das opiniões geralmente aceites sobre qualquer questão pela maioria das pessoas, é deveras ilustrativo sobre como a linguagem é usada na desvalorização feminina.
Apelidar uma menina de ‘maria-rapaz’, conquanto não seja exactamente um elogio (dado que indica uma futura mulher que deseja assumir valores masculinos, impróprios para ela), é muito mais benigno que apodar de ‘mariquinhas’ um menino (que sofre assim um prematuro desprestígio ao ser considerado um fraco, como futuro homem). A língua portuguesa contém, além destes, muitos outros exemplos da desvalorização feminina. Eis alguns:

Aventureiro – homem que se arrisca, viajante, desbravador, temerário;
Aventureira – prostituta;
Homem da vida – pessoa letrada pela sabedoria adquirida ao longo da vida;
Mulher da vida – prostituta;
Homem de má vida – gatuno, malandro, trapaceiro, burlão;
Mulher de má vida – prostituta;
Menino da rua – menino pobre, que vive na rua;
Menina da rua – prostituta;
Puto – miúdo, garoto, catraio;
Puta – prostituta;
Touro – homem forte e possante;
Vaca – prostituta;
Vadio – meliante, arruaceiro, biltre, gandulo;
Vadia – prostituta;
Vagabundo – homem que não trabalha;
Vagabunda – prostituta.

Alguns provérbios populares portugueses
[4] são também bastante elucidativos:

A mulher e a mula, o pau as cura;
Ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer;
Mulher que assobia, ou cabra ou vadia;
O melão e a mulher são maus de conhecer;
Só há duas mulheres boas no mundo: uma que já morreu, outra que ainda não nasceu.

No vernáculo português, os dois piores insultos que se podem dirigir a um homem são: ‘cabrão’ e ‘filho-da-puta’. Em ambos os casos, o homem é desvalorizado pelo suposto comportamento leviano das mulheres que lhe estão directamente relacionadas, quer seja a sua esposa quer seja a sua mãe. Isto é, apesar de serem as mulheres as verdadeiras insultadas, é o homem que vê o seu prestígio abalado ou por não ‘ter mão’ na sua esposa ou por o seu pai não a ter tido na sua mãe.

[1] Cf. Elsa Peralta, “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica” in Arquivos da Memória – Antropologia, Escala e Memória n.º 2 (nova série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007 [Consult. 15 Fev. 2009]. Disponível em http://www.ceep.fcsh.unl.pt/ArtPDF/02_Elsa_Peralta[1].pdf
[2] Cf. Mark Brumley, “Why God is Father and not Mother?” [Consult. 9 Jan 2009]. Disponível em http://www.ignatiusinsight.com/features2005/mbrumley_father1_nov05.asp
[3] Apud Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, New York, Macmillan, 1968, p. 3 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 379.
[4] Cf. Provérbios Populares Portugueses [Consult. 6 Maio 2009]. Disponível em http://proverbios.aborla.net/

domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Bruxaria: origens da perseguição

A BRUXARIA[1] [2]

Entre os séculos XV e XVII, os processos de bruxaria condenam à fogueira sobretudo mulheres, que representam 80% das condenações. Os tratados de demonologia como o Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas[3], escritos por teólogos, inquisidores ou magistrados a partir de confissões obtidas sob tortura, descrevem as práticas a que as bruxas se entregam, desde a cópula com Satanás para obterem os seus poderes maléficos, ao roubo de crianças recém-nascidas para serem transformadas em unguentos ou simplesmente comidas…
Mas como surgiu esta perseguição tão acirrada?

Ao contrário do que se convencionou quer nas crenças populares quer na tradição, a Igreja de Roma nunca estabeleceu uma autoridade tão completa como desejaria sobre os povos da Europa Ocidental. Decerto que a sua palavra era lei e podia chamar qualquer um, monarca ou camponês, à responsabilidade. Podia expandir-se localmente em dioceses e bispados, promover a compra de indulgências ou extorquir dízimos. Tinha o poder de punir quem contestasse as suas doutrinas ou a quem conviesse acusar disso, bem como de obrigar as comunidades a assistir à missa e a observar ritos, dias santos ou festivais. Porém, no que hoje em dia se denomina “batalha pelos corações e mentes” não teve um sucesso total e inequívoco. Se é verdade que muitos acreditavam fervorosamente na Virgem e nos santos, não é menos certo que muitos outros os encaravam como novas manifestações ou novas máscaras de princípios ou divindades bem mais antigos, sendo que muitos mais permaneceram, pelo menos em parte, indiferentemente pagãos.
Há que referir que as aldeias e cidades, assim como as abadias e mosteiros, subsistiam ‘cercadas’ por densa floresta, refúgio certo de todo o desconhecido, fonte de vários perigos (particularmente depois do pôr-do-sol), em suma um campo hostil que havia que apaziguar por meio de oferendas. Por outro lado, no Império Romano pré-cristianismo, havia sido reconhecido o deus Pã como regente do mundo natural; era uma figura com prerrogativas especiais em matéria de sexualidade e fertilidade, representado com orelhas, chifres, cauda e cascos de bode. Sob a autoridade da Igreja seria oficialmente demonizado e caracterizado como satânico. Não seria aliás a primeira vez que tal acontecia, pois habitualmente os deuses de qualquer religião tendem a tornar-se os demónios da religião que a suplanta.

Fig. 1 - Estátua de Pã encontrada num teatro de Pompeia.[4]

De qualquer das formas, ao mesmo tempo que passaram a frequentar a missa ao domingo e até assimilavam em certa medida os novos ritos, os camponeses europeus continuavam a prestar culto às antigas forças à espreita na floresta ao redor. Continuavam a esgueirar-se nas alturas certas do ano para os festivais pagãos de equinócios e solstícios em que os deuses da velha religião surgiam em destaque, embora disfarçados e cristianizados. Além disso, quase todas as comunidades tinham no seu seio uma velha reverenciada pela sua sabedoria, capacidade de ler a sorte ou o futuro, o conhecimento de ervas e meteorologia ou a habilidade de parteira; Muitas vezes confiavam mais nela – sobretudo as outras mulheres – que no pároco local. O padre podia representar poderes que talvez determinassem a sorte e o destino futuro das pessoas; no entanto, em variadíssimas questões esses poderes pareciam juízes majestáticos e intimidantes, severos e abstractos demais para serem incomodados. Ao invés, a típica velha da aldeia oferecia um canal para poderes mais imediatos e prontamente acessíveis, sendo ela, muito mais que ao padre, que as pessoas recorriam quando tinham questões relacionadas com clima e colheitas, a saúde do gado, a saúde pessoal, a sexualidade, a fertilidade e o parto.
Para se impor, a Igreja teve de demonizar e expulsar todas estas divindades e é neste contexto que surge o Malleus Maleficarum. Em detalhes legais, chocantes e frequentemente pornográficos, este tratado constitui um compêndio de psicopatologia sexual, um exuberante desvario de fantasia patológica. Concentra-se avidamente em cópulas diabólicas, relações com íncubos e súcubos, além de várias outras experiências eróticas e actividade ou inactividade sexual atribuíveis por imaginações abundantemente férteis às forças demoníacas. Como refere Montague Summers[5] o Martelo das Bruxas “estava no banco de todo o juiz, na mesa de todo o magistrado. Era a autoridade última, irrefutável, indiscutível. Era implicitamente aceite não só pela legislatura católica, mas também pela protestante.”[6]
Fig. 2 – Capa do tratado Malleus Maleficarum, manual medieval de caça às bruxas.[7]

Nos textos do Malleus, não há lugar para dúvidas: a mulher é encarada como fraca, pois “(…) deve assinalar-se também que ocorreu um defeito na formação da primeira mulher, pois que foi formada de uma costela encurvada (…), em direcção contrária à de um homem. E devido a este defeito é um animal imperfeito, sempre engana”[8], sendo “bonita de se olhar, contamina pelo contacto, e é mortal para se manter”, é “mentirosa por natureza”[9], pois que “toda a bruxaria vem do apetite carnal, que na mulher é insaciável.”[10] Se as mulheres bonitas eram especialmente suspeitas, o mesmo acontecia com as parteiras, com o seu íntimo conhecimento e experiência daquilo que para os Inquisidores eram insondáveis mistérios femininos. Acreditava-se habitualmente que um bebé nado-morto havia sido assassinado por uma parteira como oferenda ao demónio e era a sua bruxaria que produzia crianças deformadas, desfiguradas, doentias ou até mal comportadas.
“Se ela suspeita que a morte do seu filho foi causada por bruxaria, uma mãe normalmente não dirá nada às vizinhas, mas antes porá a roupa da criança a ferver numa caldeira de água esfaqueando-a uma e outra vez com um objecto contundente. Estas facadas serão sentidas pela bruxa sobre o seu próprio corpo e ela será obrigada a vir à casa pedir perdão. Outra alternativa será a mãe pegar na vassoura (o símbolo da bruxaria) e varrer a casa no sentido errado, ou seja, da porta para dentro, enquanto repete: «Assim como eu na minha casa ando a varrer, assim quem matou o meu menino aqui venha ter.»”[11]

Devido à confiança que inspirava noutras mulheres e à perda de autoridade para o padre, a parteira era um alvo ideal. De salientar que as mulheres assim acusadas – que, regra geral, são analfabetas e não saberiam sequer assinar as suas próprias confissões quanto mais escrever um diário pormenorizado das suas actividades – não têm qualquer ideia da sua condição nem da sua movimentada vida nocturna, que inclui participação em reuniões de bruxas, o sabat ou shabbat, para onde seguiam montadas nas suas vassouras ou nos seus lobos e se juntavam nas clareiras dos bosques praticando estranhos e misteriosos rituais (como a preparação dos unguentos resultantes da cozedura de crianças os quais se destinariam a voar ou a praticar feitiços).

Fig. 3 – A ‘Dama de Ferro’ aparelho de tortura usado para arrancar as confissões das bruxas.[12]

“As bruxas portuguesas assumem o corpo de um animal sempre que o desejem e são mais vezes referidos os patos, ratos, gansos, pombas e até formigas do que os mais comuns gatos e lebres. Os seus poderes duram entre a meia-noite e as duas da manhã e durante este tempo podem ser ouvidas a bater palmas, a rir ou a gritar de tristeza. Embora não seja dado nenhum nome em especial ao sábado, as bruxas encontram-se nos cruzamentos às terças e sextas e é por isso que há um preconceito popular contra aqueles dias expresso neste provérbio: «Às terças e sextas-feiras não cases a filha nem urdas a teia.»”[13]

Obviamente, todas as ‘confissões’ eram arrancadas através dos maiores vexames e tortura frequente; como referia Friedrich Spee von Lagenfeld (1591-1635), jesuíta alemão, na sua Cautio Criminalis[14]: “aquela que for condenada como bruxa tem de o ser”[15] afirmando ainda que quanto às acusações de que a alegada bruxa se defende “(…) ninguém lhe dá importância nem faz qualquer caso do que ela diz.”[16] Fundamentalmente, estipula-se que as bruxas têm cópula voluntária com o Demónio para dele obterem os seus poderes e os processos destinados a ‘apurar’ a verdade, mais não são que a justificação legal para os maiores abusos sobre as acusadas, pois não passam de “putas do Diabo” como Lutero as classificará.




[1] Cf. Arnelle Le Brás-Chopard – As Putas do Diabo, Círculo de Leitores, 2007.
[2] Cf. “Cruzada Contra a Bruxaria” in Michael Baigent, Richard Leigh – A Inquisição, Imago, 2001, pp. 116-137.
[3] Espécie de manual de diagnóstico para reconhecer bruxas, publicado em 1487, que se divide em três partes: a primeira ensinando aos juízes a reconhecer bruxas através dos seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expondo todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; finalmente uma terceira, regulamento todas as actividades para agir de forma ‘legal’ contra as bruxas, demonstrando como as inquirir e condenar (não necessariamente por esta ordem). Cf. “Malleus Maleficarum” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Malleus_Maleficarum
[4] Imagem extraída de “Pã (mitologia)” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lup%C3%A9rcio_(mitologia)
[5] Augustus Montague Summers (1880-1948) foi um excêntrico autor inglês e clérigo. É conhecido principalmente pela sua tradução inglesa, em 1928, do manual medieval de caça às bruxas, o Malleus Maleficarum, bem como por vários estudos sobre bruxas, vampiros e lobisomens, nos quais afirmava acreditar. Cf. “Augustus Montague Summers” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Montague_Summers
[6] Cf. Michael Baigent, Richard Leigh op. cit. p. 125
[7] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[8] Malleus Maleficarum – Español – Parte II, p. 50 [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/livros/malleus.htm (download em espanhol).
[9] Idem, p. 53
[10] Apud Alcuin Blamires, (edit.), Women Defamed and Women Defended: An Anthology of Medieval Texts, Oxford (GB), Clarendon Press, 1992, p. 47 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 54
[11] Rodney Gallop – Portugal, a Book of Folk-Ways, Cambridge, Cambridge University Press, 1936, pp.55-56 apud Ana Vicente – As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros, Lisboa, Gótica, 2001, p. 240

[12] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[13] Vide supra n. 11
[14]Cautio Criminalis sea des Processibus Contra Sagas Liber. Ad Magistratus Germania hoc tempore necesarius tum autem Consiliariis, & Confessariis Principum, Inquisitoribus, Judicibus, Advocariis, Confessariisreorum, Concionatoribus, caeteristiq; lectu utilissimus Avctore Incerto Theologo Orthod” ou “Precaução para os Promotores nos processos contra bruxas, abertura necessária hoje aos magistrados da Alemanha assim como aos conselheiros e aos confessores dos príncipes, aos inquisidores, aos juízes, aos advogados, aos confessores dos acusados, aos pregadores e a muitos outros” (1631), obra em que Spee condena vigorosamente a tortura como meio de obter confissões. Cf. “Friedrich von Spee” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 6 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_von_Spee, em http://la.wikipedia.org/wiki/Fridericus_Spee e em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cautio_Criminalis
[15] Arnelle Le Bras-Chopard, op. cit., p. 13.
[16] Idem, p. 17