domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Bruxaria: origens da perseguição

A BRUXARIA[1] [2]

Entre os séculos XV e XVII, os processos de bruxaria condenam à fogueira sobretudo mulheres, que representam 80% das condenações. Os tratados de demonologia como o Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas[3], escritos por teólogos, inquisidores ou magistrados a partir de confissões obtidas sob tortura, descrevem as práticas a que as bruxas se entregam, desde a cópula com Satanás para obterem os seus poderes maléficos, ao roubo de crianças recém-nascidas para serem transformadas em unguentos ou simplesmente comidas…
Mas como surgiu esta perseguição tão acirrada?

Ao contrário do que se convencionou quer nas crenças populares quer na tradição, a Igreja de Roma nunca estabeleceu uma autoridade tão completa como desejaria sobre os povos da Europa Ocidental. Decerto que a sua palavra era lei e podia chamar qualquer um, monarca ou camponês, à responsabilidade. Podia expandir-se localmente em dioceses e bispados, promover a compra de indulgências ou extorquir dízimos. Tinha o poder de punir quem contestasse as suas doutrinas ou a quem conviesse acusar disso, bem como de obrigar as comunidades a assistir à missa e a observar ritos, dias santos ou festivais. Porém, no que hoje em dia se denomina “batalha pelos corações e mentes” não teve um sucesso total e inequívoco. Se é verdade que muitos acreditavam fervorosamente na Virgem e nos santos, não é menos certo que muitos outros os encaravam como novas manifestações ou novas máscaras de princípios ou divindades bem mais antigos, sendo que muitos mais permaneceram, pelo menos em parte, indiferentemente pagãos.
Há que referir que as aldeias e cidades, assim como as abadias e mosteiros, subsistiam ‘cercadas’ por densa floresta, refúgio certo de todo o desconhecido, fonte de vários perigos (particularmente depois do pôr-do-sol), em suma um campo hostil que havia que apaziguar por meio de oferendas. Por outro lado, no Império Romano pré-cristianismo, havia sido reconhecido o deus Pã como regente do mundo natural; era uma figura com prerrogativas especiais em matéria de sexualidade e fertilidade, representado com orelhas, chifres, cauda e cascos de bode. Sob a autoridade da Igreja seria oficialmente demonizado e caracterizado como satânico. Não seria aliás a primeira vez que tal acontecia, pois habitualmente os deuses de qualquer religião tendem a tornar-se os demónios da religião que a suplanta.

Fig. 1 - Estátua de Pã encontrada num teatro de Pompeia.[4]

De qualquer das formas, ao mesmo tempo que passaram a frequentar a missa ao domingo e até assimilavam em certa medida os novos ritos, os camponeses europeus continuavam a prestar culto às antigas forças à espreita na floresta ao redor. Continuavam a esgueirar-se nas alturas certas do ano para os festivais pagãos de equinócios e solstícios em que os deuses da velha religião surgiam em destaque, embora disfarçados e cristianizados. Além disso, quase todas as comunidades tinham no seu seio uma velha reverenciada pela sua sabedoria, capacidade de ler a sorte ou o futuro, o conhecimento de ervas e meteorologia ou a habilidade de parteira; Muitas vezes confiavam mais nela – sobretudo as outras mulheres – que no pároco local. O padre podia representar poderes que talvez determinassem a sorte e o destino futuro das pessoas; no entanto, em variadíssimas questões esses poderes pareciam juízes majestáticos e intimidantes, severos e abstractos demais para serem incomodados. Ao invés, a típica velha da aldeia oferecia um canal para poderes mais imediatos e prontamente acessíveis, sendo ela, muito mais que ao padre, que as pessoas recorriam quando tinham questões relacionadas com clima e colheitas, a saúde do gado, a saúde pessoal, a sexualidade, a fertilidade e o parto.
Para se impor, a Igreja teve de demonizar e expulsar todas estas divindades e é neste contexto que surge o Malleus Maleficarum. Em detalhes legais, chocantes e frequentemente pornográficos, este tratado constitui um compêndio de psicopatologia sexual, um exuberante desvario de fantasia patológica. Concentra-se avidamente em cópulas diabólicas, relações com íncubos e súcubos, além de várias outras experiências eróticas e actividade ou inactividade sexual atribuíveis por imaginações abundantemente férteis às forças demoníacas. Como refere Montague Summers[5] o Martelo das Bruxas “estava no banco de todo o juiz, na mesa de todo o magistrado. Era a autoridade última, irrefutável, indiscutível. Era implicitamente aceite não só pela legislatura católica, mas também pela protestante.”[6]
Fig. 2 – Capa do tratado Malleus Maleficarum, manual medieval de caça às bruxas.[7]

Nos textos do Malleus, não há lugar para dúvidas: a mulher é encarada como fraca, pois “(…) deve assinalar-se também que ocorreu um defeito na formação da primeira mulher, pois que foi formada de uma costela encurvada (…), em direcção contrária à de um homem. E devido a este defeito é um animal imperfeito, sempre engana”[8], sendo “bonita de se olhar, contamina pelo contacto, e é mortal para se manter”, é “mentirosa por natureza”[9], pois que “toda a bruxaria vem do apetite carnal, que na mulher é insaciável.”[10] Se as mulheres bonitas eram especialmente suspeitas, o mesmo acontecia com as parteiras, com o seu íntimo conhecimento e experiência daquilo que para os Inquisidores eram insondáveis mistérios femininos. Acreditava-se habitualmente que um bebé nado-morto havia sido assassinado por uma parteira como oferenda ao demónio e era a sua bruxaria que produzia crianças deformadas, desfiguradas, doentias ou até mal comportadas.
“Se ela suspeita que a morte do seu filho foi causada por bruxaria, uma mãe normalmente não dirá nada às vizinhas, mas antes porá a roupa da criança a ferver numa caldeira de água esfaqueando-a uma e outra vez com um objecto contundente. Estas facadas serão sentidas pela bruxa sobre o seu próprio corpo e ela será obrigada a vir à casa pedir perdão. Outra alternativa será a mãe pegar na vassoura (o símbolo da bruxaria) e varrer a casa no sentido errado, ou seja, da porta para dentro, enquanto repete: «Assim como eu na minha casa ando a varrer, assim quem matou o meu menino aqui venha ter.»”[11]

Devido à confiança que inspirava noutras mulheres e à perda de autoridade para o padre, a parteira era um alvo ideal. De salientar que as mulheres assim acusadas – que, regra geral, são analfabetas e não saberiam sequer assinar as suas próprias confissões quanto mais escrever um diário pormenorizado das suas actividades – não têm qualquer ideia da sua condição nem da sua movimentada vida nocturna, que inclui participação em reuniões de bruxas, o sabat ou shabbat, para onde seguiam montadas nas suas vassouras ou nos seus lobos e se juntavam nas clareiras dos bosques praticando estranhos e misteriosos rituais (como a preparação dos unguentos resultantes da cozedura de crianças os quais se destinariam a voar ou a praticar feitiços).

Fig. 3 – A ‘Dama de Ferro’ aparelho de tortura usado para arrancar as confissões das bruxas.[12]

“As bruxas portuguesas assumem o corpo de um animal sempre que o desejem e são mais vezes referidos os patos, ratos, gansos, pombas e até formigas do que os mais comuns gatos e lebres. Os seus poderes duram entre a meia-noite e as duas da manhã e durante este tempo podem ser ouvidas a bater palmas, a rir ou a gritar de tristeza. Embora não seja dado nenhum nome em especial ao sábado, as bruxas encontram-se nos cruzamentos às terças e sextas e é por isso que há um preconceito popular contra aqueles dias expresso neste provérbio: «Às terças e sextas-feiras não cases a filha nem urdas a teia.»”[13]

Obviamente, todas as ‘confissões’ eram arrancadas através dos maiores vexames e tortura frequente; como referia Friedrich Spee von Lagenfeld (1591-1635), jesuíta alemão, na sua Cautio Criminalis[14]: “aquela que for condenada como bruxa tem de o ser”[15] afirmando ainda que quanto às acusações de que a alegada bruxa se defende “(…) ninguém lhe dá importância nem faz qualquer caso do que ela diz.”[16] Fundamentalmente, estipula-se que as bruxas têm cópula voluntária com o Demónio para dele obterem os seus poderes e os processos destinados a ‘apurar’ a verdade, mais não são que a justificação legal para os maiores abusos sobre as acusadas, pois não passam de “putas do Diabo” como Lutero as classificará.




[1] Cf. Arnelle Le Brás-Chopard – As Putas do Diabo, Círculo de Leitores, 2007.
[2] Cf. “Cruzada Contra a Bruxaria” in Michael Baigent, Richard Leigh – A Inquisição, Imago, 2001, pp. 116-137.
[3] Espécie de manual de diagnóstico para reconhecer bruxas, publicado em 1487, que se divide em três partes: a primeira ensinando aos juízes a reconhecer bruxas através dos seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expondo todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; finalmente uma terceira, regulamento todas as actividades para agir de forma ‘legal’ contra as bruxas, demonstrando como as inquirir e condenar (não necessariamente por esta ordem). Cf. “Malleus Maleficarum” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Malleus_Maleficarum
[4] Imagem extraída de “Pã (mitologia)” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lup%C3%A9rcio_(mitologia)
[5] Augustus Montague Summers (1880-1948) foi um excêntrico autor inglês e clérigo. É conhecido principalmente pela sua tradução inglesa, em 1928, do manual medieval de caça às bruxas, o Malleus Maleficarum, bem como por vários estudos sobre bruxas, vampiros e lobisomens, nos quais afirmava acreditar. Cf. “Augustus Montague Summers” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Montague_Summers
[6] Cf. Michael Baigent, Richard Leigh op. cit. p. 125
[7] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[8] Malleus Maleficarum – Español – Parte II, p. 50 [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/livros/malleus.htm (download em espanhol).
[9] Idem, p. 53
[10] Apud Alcuin Blamires, (edit.), Women Defamed and Women Defended: An Anthology of Medieval Texts, Oxford (GB), Clarendon Press, 1992, p. 47 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 54
[11] Rodney Gallop – Portugal, a Book of Folk-Ways, Cambridge, Cambridge University Press, 1936, pp.55-56 apud Ana Vicente – As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros, Lisboa, Gótica, 2001, p. 240

[12] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[13] Vide supra n. 11
[14]Cautio Criminalis sea des Processibus Contra Sagas Liber. Ad Magistratus Germania hoc tempore necesarius tum autem Consiliariis, & Confessariis Principum, Inquisitoribus, Judicibus, Advocariis, Confessariisreorum, Concionatoribus, caeteristiq; lectu utilissimus Avctore Incerto Theologo Orthod” ou “Precaução para os Promotores nos processos contra bruxas, abertura necessária hoje aos magistrados da Alemanha assim como aos conselheiros e aos confessores dos príncipes, aos inquisidores, aos juízes, aos advogados, aos confessores dos acusados, aos pregadores e a muitos outros” (1631), obra em que Spee condena vigorosamente a tortura como meio de obter confissões. Cf. “Friedrich von Spee” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 6 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_von_Spee, em http://la.wikipedia.org/wiki/Fridericus_Spee e em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cautio_Criminalis
[15] Arnelle Le Bras-Chopard, op. cit., p. 13.
[16] Idem, p. 17