quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 5 de 5

Conclusão
Naturalmente, esta poderá considerar-se uma visão demasiado pessimista ou demasiado fantasiosa do futuro. Porém, colocando-a contra a luz da actualidade, torna-se bastante plausível. Alguns exemplos podem estabelecer essa relação:

I. O presidente George W. Bush tomou unilateralmente a decisão de abandonar o Protocolo de Quioto – uma tímida iniciativa para diminuir a emissão de gases poluentes pelos países industrializados, da qual cerca de 25% é da exclusiva responsabilidade dos EUA (informação recolhida dos media) – por considerar que tal acordo era prejudicial à indústria americana;

II. O abate de floresta virgem é cada vez mais intenso, pela incessante procura de madeiras exóticas;

III. A invasão do Iraque tendo em vista – apesar de todos os discursos humanitários acerca da implementação dos Direitos Humanos – a apropriação e posterior divisão entre si dos recursos petrolíferos do país – de que estarão apenas explorados cerca de 10% (informação recolhida dos media) – entre as potências ocidentais;

IV. A pesca excessiva que impossibilita a reposição das populações piscícolas – estimando-se que o bacalhau, por exemplo, que sofreu uma redução de 70% no Mar do Norte, chegue à extinção dentro de quinze anos a manter-se o ritmo actual de pesca (informação recolhida dos media) –, motivada pela crescente demanda de alimento pelas populações humanas em aumento constante.

Os exemplos abundam e poderiam multiplicar-se.
Por tudo isto, a realidade ficcionada que foi anteriormente descrita tem grandes possibilidades de poder vir a tornar-se uma realidade concreta, a menos que se encontrem formas de regular a globalização que rege as sociedades ocidentais e que, não há que ter ilusões, veio para ficar, considerando as avassaladoras vantagens do ponto de vista económico. De evitar que essa globalização não se venha a traduzir numa uniformização da sociedade, nivelada pela mediocridade ou pela superficialidade, num mundo superpovoado que, pela busca incessante de recursos, tornará o planeta que lhe serve de guarida num deserto estéril.

Cá estaremos para ver…


Bibliografia

FUKUYAMA, Francis, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva, s.d.

HUNTINGTON, Samuel, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva, 2001, 2ª edição.

HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2001.

HUXLEY, Aldous, Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2001.

ORWELL, George, 1984, Ana Luísa Faria (trad.), Porto, Público Comunicação Social, S.A., 2002, colec. Mil Folhas, n. 25.

Osborne, Richard, Homem Demolidor, I. Mafra, H. César, M. J. Bento, (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1993.

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., Os Mercadores do Espaço, João Miguel Carvalho (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1952 (1ª edição).

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 4 de 5

As sociedades superpovoadas
Contudo, talvez não seja preciso haver uma guerra a nível global. Durante o séc. XIX os sucessivos progressos da tecnologia foram acompanhados de correspondência no campo organizativo. À maquinaria complicada tiveram de ser opostas complicadas disposições sociais, destinadas a funcionarem tão suave e eficazmente como os novos meios de produção. Por outro lado, as indústrias ao expandirem-se exigiram uma proporção cada vez maior de trabalhadores, encorajando indirectamente a natalidade, até que, presentemente, dado o magnífico sucesso da medicina em prolongar a vida humana e em aguentá-la quando esta ainda é incipiente, a superpopulação é cada vez mais uma realidade palpável.
A quantidade rapidamente crescente da população pesa cada vez mais sobre os recursos naturais. Cerca de três mil milhões de seres humanos exigem actualmente dos seus governos o provimento de boas condições de vida. A pressão do crescimento demográfico e dos progressos tecnológicos levarão a um incremento dos processos organizativos, que terá reflexo na legislação que rege as comunidades. Certamente que as Constituições e as leis de defesa do cidadão não serão abolidas, mas serão subordinadas às novas realidades tendo em vista o funcionamento regular das instituições de cada país.
Quando a vida económica de uma nação se torna periclitante, compete ao governo encontrar soluções para enfrentar essa situação crítica, impondo restrições aos seus governados; ora isto traz como consequência um clima de intranquilidade política ou mesmo rebelião declarada, ao qual as autoridades respondem com medidas visando salvaguardar a ordem pública e a sua própria existência, concentrando cada vez mais poder e, finalmente, ainda que não o tenham procurado, tomam-lhe o gosto. São as Constituições democráticas que impedem que demasiado poder se concentre em poucas mãos, mas em qualquer sociedade em que a população começou a exercer intensa pressão sobre os recursos disponíveis, surgem inevitavelmente tentações de governo totalitário.
Assim, a superpopulação conduz à insegurança económica e à intranquilidade social que, por sua vez, levam a um maior controlo governativo e a uma maior concentração do seu poder. Quando os sistemas democráticos são fracos, a tendência é para se instalar um governo ditatorial, conforme tem sido abundantemente demonstrado pela História. No entanto, observando os países ocidentais em que democracia e liberdade constituem património colectivo e que, altamente industrializados, são obrigados a sustentar uma população muito maior do que a que seria possível a partir dos recursos naturais disponíveis, a viragem para um regime totalitário com a consequente centralização económica no Estado ou numa oligarquia, iria quebrar as actuais relações de produção que, mal ou bem, têm vindo a servir de suporte a um bem-estar de modo geral superior ao do resto do globo. Além disso, para a sua própria manutenção, o totalitarismo necessita de subjugar as populações mantendo-as num estado de tensão permanente, o qual, por seu turno, não é favorável ao desenvolvimento económico, já que desvia o esforço das pessoas concentrando-o na sobrevivência individual ao invés de o concentrar na busca de melhores condições de vida.
Deste modo, o corolário lógico da vivência que nos alvores do séc. XXI é a existente no mundo ocidental e que, inevitavelmente, tem tendência a propagar-se a nível global por constituir sinónimo de invejável sucesso – ainda que esse sucesso tenha sido conseguido à custa dos países menos desenvolvidos, fornecedores de matérias-primas e mão-de-obra barata –, não poderá ser uma qualquer forma de totalitarismo que iria pôr em causa uma globalização económica paulatinamente construída desde o final da guerra-fria.Tem maiores probabilidades de ser tal como foi descrito no capítulo anterior: um capitalismo desenfreado que exauriu por completo os recursos do planeta Terra e que vê os cidadãos apenas e só como consumidores compulsivos que desenvolvem os maiores esforços para tudo adquirirem. Em que o desenvolvimento industrial deixou de ter como objectivo o incremento do bem-estar das populações para passar a perseguir a criação de novos produtos mais vendáveis que os anteriores, subordinado às directrizes das agências de publicidade tornadas todo-poderosas. Em que os governos têm apenas uma função decorativa, subordinados aos ditames dos presidentes das companhias publicitárias que almejam antes de tudo o aumento dos seus lucros.

domingo, 8 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 3 de 5

Uniformização da sociedade
Para se atingir este estádio em que a população sente a necessidade e é compelida a consumir, há que modificar o seu comportamento desgarrado e torná-lo uniforme e previsível. A solução não é nova, tendo já sido testada – e por algum tempo conseguida – pelos regimes totalitários do séc. XX: nazismo e estalinismo. Em ambos os casos, procedeu-se a um redireccionamento da sociedade, alterando os seus padrões comportamentais através da repressão e, sobretudo, da propaganda.
Como George Orwell demonstrou em 1984 a propaganda é o método mais eficaz de influenciar a opinião pública, desde que se controlem os meios emissores. E a propaganda serve os mais diversos fins, desde a publicidade comercial comummente aceite até à mobilização de massas com objectivos políticos.
Neste contexto surge como paradigmática a história do Instituto para a Análise Propagandística (Institute for Propaganda Analysis), criado em 1937 nos Estados Unidos, numa altura em que a propaganda nazi atingia o seu auge (Aldous Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo). Tinha por missão efectuar uma análise da propaganda não racional com preparação de vários textos para estudantes liceais e universitários. Veio então a II Guerra Mundial, uma guerra total em todas as frentes, desde a frente de combate até ao conflito surdo, mas não menos determinante, pela posse de informações estratégicas e pelo ludibriar dos esforços inimigos na sua obtenção, além da acção psicológica levada a efeito quer para levantar o moral das próprias populações quer para desmoralizar as populações inimigas. Assim sendo, analisar a propaganda emitida tornara-se contraproducente em relação ao esforço de guerra e o Instituto seria encerrado em 1941.
Contudo, ainda antes do começo da guerra, já muitos sectores punham profundas objecções à sua actividade. Muitos educadores desaprovavam que se ensinasse a analisar a propaganda, por considerarem que isso tornaria os educandos indevidamente cínicos. As autoridades militares também não viam com bons olhos a análise propagandística, por recearem que os soldados começassem a examinar melhor as ordens dos sargentos instrutores. A grande maioria dos religiosos também era contra, considerando que tendia a enfraquecer a fé e a afastar as pessoas dos cultos. Os publicitários, por seu lado, opunham-se veementemente a que se analisasse a propaganda pois podia minar a fidelidade à marca e a reduzir as vendas.
Não serão de surpreender estas reacções “alérgicas” quando se falava de analisar a propaganda. Um exame demasiado pormenorizado, levado a cabo pelas pessoas, daquilo que é dito pelos seus líderes, sejam políticos, militares ou religiosos, poderia tornar-se extremamente subversivo. A ordem social depende, para a sua manutenção, da aceitação sem demasiadas questões embaraçosas da propaganda posta a circular pelas autoridades, embora seja de evitar a postura acrítica perante as informações veiculadas.No entanto, faltará ainda o catalisador que terá a função de impelir a profundas modificações na ordem social vigente de modo a torná-la uniforme e previsível. Tanto em 1984 de George Orwell como em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, como em muitas outras obras que descrevem uma sociedade futura[1], o catalisador é uma guerra ou, melhor dizendo, uma última Grande Guerra, imensamente mais aniquiladora que todas as anteriores, de tal forma que produziu um profundo impacto na mente das populações, criando terreno fértil para a aceitação de uma nova ordem social.
[1] Cf. Richard Osborne, Homem Demolidor, Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1993. Adaptação do argumento de filme com o mesmo título, protagonizado por Sylvester Stallone e Wesley Snipes, em que se descreve um mundo após uma guerra global com elevadíssimos custos em vidas humanas e na destruição da propriedade e das instituições, do qual emerge uma sociedade absolutamente pacífica em que as pessoas ficam simplesmente nauseadas com a mais leve sugestão de violência.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 2 de 5

Evolução para um capitalismo selvagem[1]

Este “admirável mundo novo”, para citar o título da famosa obra de Aldous Huxley, será tudo menos admirável quando comparado ao actual. O capitalismo selvagem, de que tanto se fala actualmente como tendência que se quer evitável a todo o custo, tem aqui plena realização. As agências de publicidade dominam a sociedade a todos os níveis, determinando o comportamento humano. O planeta Terra já pouco pode oferecer de tão exaurido que foi. Impera a indiferença em relação a um provável colapso futuro devido à sobreexploração, existindo a convicção cega de que, caso necessário, a ciência poderá criar novos “recursos naturais” para substituir os que entretanto se forem esgotando. Desencorajando-se a leitura e proporcionando-se lares de ambiente deprimente, as pessoas são induzidas a consumir freneticamente para aliviar o tédio que sentem.

A água corrente nas torneiras é salgada, já que a escassez de água doce obriga a preços só compatíveis com os quadros superiores das grandes companhias de publicidade, os quais constituem os privilegiados – com um número da segurança social baixo, da ordem das dezenas de milhão, em relação à restante população, da ordem dos triliões – de uma sociedade com um excesso populacional dramático. Este excesso populacional levou a que o conceito de habitação se tenha tornado obsoleto: a multidão de empregados nos escritórios citadinos pernoita nos degraus das escadas dos arranha-céus, alugados em cada noite; o reduzido número de habitações que ainda é construído – e que constitui o sonho de uma vida para o comum dos cidadãos – não passa de uma fina estrutura de plástico pré-fabricado. Nos dormitórios existentes as camas nunca chegam a arrefecer, pois há um esquema rotativo de dormidas em que um utente é acordado pelo outro quando chega a vez de um de ocupar o leito e de outro o ceder.

Todos os produtos consumíveis pelo ser humano são conhecidos apenas pela sua designação comercial, contendo um alcalóide simples que produz habituação e uma necessidade específica de consumir outro produto da mesma marca. É assim que a uma oferta de cigarros surge a necessidade de fumar aquela marca específica, que, por sua vez, gera a necessidade de comer um chocolate daquela marca específica, que, por seu turno, faz pensar em consumir uma bebida daquela marca específica, originando o desejo de fumar novamente um cigarro daquela marca específica, repetindo o ciclo duas ou três vezes antes de chegar à saciedade. Além do alcalóide, os anúncios publicitários – tridimensionais, com projecção de visão-sabor-cheiro-audição-sensação directamente nos órgãos sensoriais humanos – cumprem também a função de fidelizar irrevogavelmente o consumidor às marcas, a ponto de este ao pensar em fumar um cigarro, comer um chocolate ou tomar uma bebida, repetir de forma reflexa a mensagem publicitária associada ao produto que está a consumir. Ingerir comida natural, como um assado nos moldes tradicionais, tornou-se um acto repugnante.

Continuam a existir trabalhadores não especializados que se encarregam das tarefas mais árduas, com contratos de trabalho vitalícios, na prática, já que embora tenham uma duração fixa, o trabalhador não pode abandonar a companhia sem pagar as dívidas que contrair; acrescente-se que todo o sistema está montado para que seja impossível não contrair dívidas, pois os produtos são vendidos a preços exorbitantes em relação à quantidade dos mesmos que é dispensada – escassa, que gera a necessidade de obtenção de nova dose – e ao salário que se recebe. De cada vez que se adquire um produto das inúmeras máquinas de venda automática, esse produto leva inexoravelmente ao consumo de outro, que, por sua vez, leva ao consumo de um outro e, como o crédito é extremamente facilitado, a dívida cresce de forma exponencial.

Todos os produtos são fabricados a partir de compostos sintéticos de substituição de elementos naturais agora esgotados na maioria do planeta. Alguns deles viciam instantaneamente quer pelos alcalóides que contêm quer mediante a utilização de apelos publicitários em forma de projecções subliminares e subsónicas, sendo extremamente difícil, senão mesmo impossível, a revogação do hábito. A religião tornou-se acima de tudo um negócio extremamente lucrativo, dado o pequeno investimento necessário – pois fideliza o consumidor sem necessidade de recurso a sofisticadas tecnologias para vender o produto – e o comparativamente elevadíssimo lucro – resultante da devoção conseguida, que se traduz na compra obsessiva de todos os artigos com ela relacionados, e da consequente publicidade, a custo zero, do produto pelo consumidor.

As fábricas deixaram de ter filtros nas chaminés para retenção do enxofre e dos gases industriais, porque deixou de interessar proteger a saúde dos cidadãos uma vez que a morte era muito mais lucrativa: tornou-se mais barato pagar seguros de vida que pensões; os seguros de doença movimentam muito dinheiro, pois quem passou cinquenta anos da sua vida a respirar os fumos tóxicos sabe que irá estar doente grande parte do tempo e se morrer em pouco tempo, o lucro das seguradoras é quase total; as agências funerárias também levam o seu quinhão, obtendo elevados proventos na disposição dos mortos; e, por fim, quando o consumidor ultrapassa a idade de poder trabalhar, dispõe de muito pouco dinheiro para adquirir bens de consumo, pelo que deixa de ter utilidade.

Embora continuem a existir potências como os EUA, o Governo deixou de ser uma entidade com vontade própria, gerindo o país com maior ou menor sucesso, para se tornar o órgão que dá forma de lei aos interesses das grandes agências publicitárias, não mais que um banco central de influências. O Congresso é dominado indirectamente pelas companhias de publicidade, através dos congressistas que constam das respectivas folhas de pagamento e o Presidente, destronado do lugar de vértice da nação, tem de solicitar respeitosamente uma abertura nas preenchidas agendas dos delegados publicitários ao Congresso. A política, como nunca o fora até então, tornou-se um declarado campo de batalha das agências de publicidade, remetendo para plano secundário os candidatos – ensinados, vestidos, maquilhados, ensaiados e dirigidos – que mais não fazem que debitar apelos publicitários em formato de slogans políticos vazios de conteúdo. Também mais do que nunca os aspirantes a candidatos não faltavam, pois os políticos ganhavam quase tanto como um publicitário principiante, em termos de salário base, a que acresciam diversas avenças, abonos, consultorias e afins ao longo da carreira, fazendo ascender os proventos ao nível de um executivo publicitário médio; para todos os efeitos, era um importante salto da inferior condição social de consumidor para outra em que se detinham alguns privilégios.

A política externa americana, tal como a dos outros países desenvolvidos – em termos mercantis –, pautava-se pela mais ostensiva ingerência nos destinos dos escassos e ínfimos recantos da Terra, tradicionalmente mais atrasados, que ainda não tivessem optado por abraçar os benefícios da economia de mercado, isto é, que ainda não se tivessem constituído como mais um grupo de consumidores obedientes. Para isso, recorre-se, naturalmente, ao Exército, mas os métodos empregues diferem substancialmente; as metralhadoras e os canhões foram substituídos por projecções de visão-sabor-cheiro-audição-sensação, simplesmente químicas, subsónicas ou estridentes, mas sempre subliminares, dirigidas directamente aos órgãos sensoriais onde penetram à força e os soldados foram substituídos por técnicos de publicidade e abastecimento. Os resultados são tão satisfatórios que, logo depois de terminarem as campanhas militares, as populações visadas acorrem em massa aos pontos de abastecimento desejando adquirir e consumir produtos de que, horas antes, nunca tinham experimentado qualquer necessidade, lutando mesmo entre si para os conseguirem; líderes surgem nos noticiários televisivos fumando dois cigarros, bebendo uma chávena de café e entornando metade no fato novinho em folha, tudo das principais marcas comercializadas e também tudo no espaço de vinte segundos, agradecendo profusamente terem sido libertados da “escravidão” em que viviam antes.

É este o mundo em que o capitalismo selvagem impera. Todavia, poderá surgir a dúvida sobre se será realmente esta uma evolução de alguma forma inevitável. É possível que se possa evoluir para um sistema totalitário nos moldes tradicionais, em que o Estado ou uma oligarquia concentram em si o comando exclusivo relativamente a todos os aspectos da vida do país; é possível mas não provável, pois a História tem demonstrado que os sistemas totalitários são incompatíveis com o desenvolvimento económico. Não terá sido por acaso que os regimes de ditadura militar da América Latina soçobraram ou que a “cortina de ferro” caiu; estes regimes chegaram a um ponto da sua existência em que não conseguiam dar resposta a uma movimentação de capitais muito mais intensa (Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem).


[1] Cf. Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, Os Mercadores do Espaço, Mem-Martins, João Miguel Carvalho (trad.), Publ. Europa-América, 1952 (1ª edição); Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).

domingo, 1 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 1 de 5

As previsões do futuro constituem habitualmente o campo de actividade de astrólogos, cartomantes e afins, com os resultados – ou a falta deles – que se conhecem.
Todavia isso não significa que, a partir da situação actual, não se possa extrapolar sobre uma possível evolução para o mundo contemporâneo, no que se poderia chamar um exercício de pesquisa histórica inversa, isto é, iniciando-se no presente e caminhando para o futuro ao invés de rever o passado. E, no entanto, é com base nesse mesmo passado que se pode criar essoutro hipotético futuro.

Por outro lado, a ficção científica sempre teve a virtude de antecipar de algum modo o futuro. Veja-se o caso de Júlio Verne e as suas obras Da Terra à Lua ou Vinte Mil Léguas Submarinas, clássicos da literatura que imaginaram o que é nos nossos dias uma realidade perfeitamente comum.

Deste modo, recorrendo à informação que nos é diariamente debitada pelos media e juntando-lhe a especulação literária da ficção científica, tentou-se construir um quadro daquilo que poderá ser o mundo contemporâneo quando se tornar pós-contemporâneo. Não será um retrato lisonjeiro mas antes um perfil que reflectirá uma possível evolução das tendências actuais – políticas, económicas, culturais – e suas consequências na sociedade mundial.

A situação actual[1]

Tem-se verificado que o que comanda actualmente a política dos países mais poderosos são os interesses económicos, regra geral pensados para o tempo imediato. O princípio democrático de que o poder político, por ser resultante de sufrágio popular, está acima do poder económico é, nos dias de hoje, encarado com certo cinismo numa sociedade mundial em que o principal valor é o mercado e, por conseguinte, o dinheiro. Tudo o resto se torna secundário para os grandes decisores políticos, sejam valores morais ou de sobrevivência humana.

O mundo contemporâneo está incerto, desregulado. Durante a “guerra-fria” esteve perfeitamente definido em dois blocos antagónicos: de um lado uma sociedade democrática e livre – ainda que com imensas lacunas – composta pelos EUA e pela Europa; de outro, uma sociedade dita igualitária mas que era tão-somente totalitária, o grupo dos países comunistas. Ambos disputavam entre si a primazia mundial. Existia ainda um grupo de países chamados não-alinhados, que não se reviam em nenhum dos blocos, mas que faziam um certo jogo entre os dois. Nos dias de hoje, o mundo tal como era conhecido, desabou.

Com o desfazer da “cortina de ferro” e o colapso do sistema comunista, deixou de existir um mundo bipolar, emergindo uma única e grande potência: os Estados Unidos. É uma potência com um poderio militar sem rival, aliado a uma enorme capacidade económica, o que lhe permitiu auto-assumir um papel de defensora da democracia e da liberdade, vistas pelo prisma do mercado-livre, isto é, só aqueles países que optaram por uma economia de mercado são verdadeiramente democráticos. Estava assim criada a ideia de que democracia e mercado-livre são conceitos convergentes e que se fundem num único.

Todavia, se é possível dizer-se que sem a economia de mercado não se chega à democracia – como ficou demonstrado após o colapso da economia centralizada comunista em que tudo e todos dependiam do Estado, logo tinham a sua liberdade circunscrita o que não é compatível com um regime democrático –, não é correcta a afirmação contrária, pois a democracia não se obtém através da economia de mercado – veja-se o caso das ditaduras sul-americanas, em que os milhares de mortos e desaparecidos por discordarem da política oficial não impediram o florescimento de uma economia liberal.

Surge então o conceito de globalização, que embora não seja exactamente novo – pois tem sido utilizado desde o séc. XV quando Portugal, Espanha, e, por fim, a Inglaterra passaram a dispor de vastos impérios coloniais – conheceu uma aceleração e um aprofundamento sem par na última década do séc. XX e nestes primeiros anos do séc. XXI. Tendo beneficiado sobretudo da revolução tecnológica trazida pela informática – que também esteve na origem da queda do bloco soviético, dado que a rigidez da sua economia impedia a livre circulação de capitais proporcionada pela era dos computadores (Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem) – a globalização fez-se sentir não apenas a nível económico mas também na transmissão de informação e conhecimento.

Ora informação e conhecimento são importantes formas de poder que, como seria de esperar, atraem a atenção dos poderosos que, controlando a sua transmissão, adquirem um óptimo veículo para a implementação dos seus interesses (como brilhantemente descreveu George Orwell em 1984), sejam eles de índole meramente comercial ou de índole eminentemente política. Sintomaticamente, porém, tem-se verificado uma grande convergência das duas – a ponto de a primeira servir como condutor da segunda – nas relações da única superpotência existente com o resto do mundo ou não fosse pela via comercial que se tem estabelecido a hegemonia dos povos nos sucessivos impérios que já existiram ao longo da História. Assim sendo, qual poderá ser a evolução a partir daqui? Os EUA certamente buscam a manutenção da liderança mundial a nível político – por vezes com “tiques” imperialistas – e a melhor forma de conseguir esse objectivo é a manutenção de uma hegemonia comercial. Suponha-se então um mundo em que vender se tornou um fim em si mesmo e em que as agências de publicidade tudo controlam, inclusive os órgãos de governo. Não será substancialmente diferente daquele em que vivemos, quando se sabe a influência que os lobbies económicos têm sobre o poder político nos dias de hoje, mas antes um seu corolário lógico.

[1] Cf. Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Mem-Martins, Publ. Europa-América; Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva, 2001, 2ª edição; Mário Soares, Um Mundo Inquietante, Mafra, Círculo de Leitores, 2003.