sábado, 27 de março de 2010

Desvalorização feminina na Memória (I)

A Memória tem sido encarada exclusivamente do ponto de vista individual. Só com o renovado interesse pela História dos povos sem História, se começou a aperceber que a sua vertente colectiva tem particular relevância para o estudo das sociedades, pois embora seja o indivíduo que recorda, fá-lo enquanto parte de um grupo social e, por conseguinte, sujeito a todas as influências que actuam sobre esse grupo. É aliás a memória colectiva que permite a identificação de uma determinada sociedade como diferente das demais.[1]
Um componente fundamental dessa identificação é precisamente a linguagem, a qual reflecte a cultura dos povos, que não é mais que o produto da sua Memória.

A Língua
Quase todos nós utilizamos terminologia masculina para falar de ambos os sexos. O argumento mais comum é o de que, ao falar-se de ‘Homem’, se está a incluir tanto os homens como as mulheres, isto é, se está a falar do ser humano. Porém, não será tal proposição um engano? Não será antes o resultado directo do mito de que a procriação é um papel exclusivamente masculino e de que Deus é masculino?
[2] Tendo o Homem sido feito à imagem e semelhança de Deus – segundo nos diz a religião – isso significa que o homem é o ‘verdadeiro humano’, o modelo do que um ser humano deverá ser quando comparado com Deus. Extrapolando, pode então considerar-se que a mulher será uma aproximação imperfeita desse ideal, o que levará à utilização de termos masculinos de uma forma genérica. Um interessante exemplo deste modo de pensar é dado pelo total da entrada ‘mulher’ na 1.ª edição da Enciclopédia Britânica em 1771: “Mulher – A fêmea do homem. Ver Homo”.[3]
O subtil mas extremamente poderoso efeito da linguagem pode ser melhor percebido se houver uma inversão dos termos da equação: se o termo ‘Homem’ engloba obviamente a mulher, o que aconteceria se o termo ‘Mulher’ designasse também o homem? Seria um absurdo? O senso comum, isto é, o conjunto das opiniões geralmente aceites sobre qualquer questão pela maioria das pessoas, é deveras ilustrativo sobre como a linguagem é usada na desvalorização feminina.
Apelidar uma menina de ‘maria-rapaz’, conquanto não seja exactamente um elogio (dado que indica uma futura mulher que deseja assumir valores masculinos, impróprios para ela), é muito mais benigno que apodar de ‘mariquinhas’ um menino (que sofre assim um prematuro desprestígio ao ser considerado um fraco, como futuro homem). A língua portuguesa contém, além destes, muitos outros exemplos da desvalorização feminina. Eis alguns:

Aventureiro – homem que se arrisca, viajante, desbravador, temerário;
Aventureira – prostituta;
Homem da vida – pessoa letrada pela sabedoria adquirida ao longo da vida;
Mulher da vida – prostituta;
Homem de má vida – gatuno, malandro, trapaceiro, burlão;
Mulher de má vida – prostituta;
Menino da rua – menino pobre, que vive na rua;
Menina da rua – prostituta;
Puto – miúdo, garoto, catraio;
Puta – prostituta;
Touro – homem forte e possante;
Vaca – prostituta;
Vadio – meliante, arruaceiro, biltre, gandulo;
Vadia – prostituta;
Vagabundo – homem que não trabalha;
Vagabunda – prostituta.

Alguns provérbios populares portugueses
[4] são também bastante elucidativos:

A mulher e a mula, o pau as cura;
Ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer;
Mulher que assobia, ou cabra ou vadia;
O melão e a mulher são maus de conhecer;
Só há duas mulheres boas no mundo: uma que já morreu, outra que ainda não nasceu.

No vernáculo português, os dois piores insultos que se podem dirigir a um homem são: ‘cabrão’ e ‘filho-da-puta’. Em ambos os casos, o homem é desvalorizado pelo suposto comportamento leviano das mulheres que lhe estão directamente relacionadas, quer seja a sua esposa quer seja a sua mãe. Isto é, apesar de serem as mulheres as verdadeiras insultadas, é o homem que vê o seu prestígio abalado ou por não ‘ter mão’ na sua esposa ou por o seu pai não a ter tido na sua mãe.

[1] Cf. Elsa Peralta, “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica” in Arquivos da Memória – Antropologia, Escala e Memória n.º 2 (nova série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007 [Consult. 15 Fev. 2009]. Disponível em http://www.ceep.fcsh.unl.pt/ArtPDF/02_Elsa_Peralta[1].pdf
[2] Cf. Mark Brumley, “Why God is Father and not Mother?” [Consult. 9 Jan 2009]. Disponível em http://www.ignatiusinsight.com/features2005/mbrumley_father1_nov05.asp
[3] Apud Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, New York, Macmillan, 1968, p. 3 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 379.
[4] Cf. Provérbios Populares Portugueses [Consult. 6 Maio 2009]. Disponível em http://proverbios.aborla.net/